História

Artigo – São João passou por aqui?

Cresci ouvindo esta brincadeira, entre tantas outras que aconteciam durante as festas juninas. Corri atrás de foguetes para pegar as tabocas, bebi licor e esquentei o meu corpo inocente nas fogueiras de São João. Tudo não passaria de um saudosismo exagerado não fosse a dura realidade sobre o que se encaminha para um ponto final. Anarriê, alavantu, bangalô, canjica, quadrilha, olha pro céu são palavras de um rico vocabulário que quase não se escuta mais. Afinal, cadê o meu São João, ele não passou por aqui?

Tal indagação, inserida nesse vocabulário, confronta a riqueza de uma festa simples e recheada de inocência com uma onda transformista que se nos apresenta travestida de vulgaridade. Ceticismo à parte, estamos no mês de junho, período em que acontece a festa mais tradicional da região Nordeste e uma das mais interessantes do Brasil. Não há quem resista a essa tradição, que, segundo os historiadores, vem desde o inicio do século passado, quando foram dados os primeiros passos do forró no solo brasileiro.  

O certo é que, independentemente de ter a sua origem no vocábulo africano forrobodó, no conceito do potiguar Luiz da Câmara Cascudo; ou no inglês for all – um baile livre e para muitos, que outros defendem ter se originado a partir das festas promovidas pelos ingleses que vieram trabalhar nas estradas de ferro do sertão nordestino -, foi a partir de 1945, com a dupla Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que o forró passou a ter um estilo com as características brasileiras e, mais especificamente, nordestinas.

De lá para cá, Gonzaga virou um mito e desde a criação do baião, em 1946, transformou-se na principal referência da música junina. Quanta saudade das suas canções, que o rádio quase não toca mais, ou do seu jeito matuto a encantar a sua legião de irmãos e conterrâneos. Em junho, a sanfona ronca do sertão ao litoral e Luiz Gonzaga segue como o grande ídolo até mesmo por aqueles que querem deturpar as nossas belas tradições. 

Mas Gonzaga não foi o único a espalhar o forró Brasil afora. Em 1956, Marines despontara com a sua voz de cangaceira destemida, fazendo companhia ao próprio Gonzaga e a Jackson do Pandeiro, outro que já estava na estrada para eternizar a música nordestina. E para completar a festa, na chegada da década de 1960, o Trio Nordestino, da Bahia, explodiria para o mundo. Assim, durante quatro décadas seguidas, esses artistas foram os precursores geniais, cantando, divulgando e imortalizando o forró e as festas de São João.

Mesmo que a década de 1990 tenha virado sem as presenças de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Lindu, e tendo Marines quase no ostracismo, surgiram novos nomes para segurar a onda. Dominguinhos, Alcymar Monteiro e Jorge de Altinho, que já haviam despontado em décadas anteriores, se somariam a Flávio José, Adelmário Coelho, Waldonys, Santana, Maciel Melo, Targino Gondim e tantos outros Gonzagas e Lindus.

Com a revolução tecnológica, a década de 1990 também proporcionaria grandes transformações no forró e nos festejos juninos. Uma pena que, a festa, na maioria dos casos, deixou de ser uma manifestação da cultura popular para se transformar num mero produto da indústria cultural. É claro que aconteceram coisas positivas, mas não podemos esconder que o homem deixou de ser um sujeito ativo para ser um agente passivo, vítima das transformações tecnológicas e da ação dos grandes grupos econômicos.

Como tudo nessa vida está de cabeça para baixo, a força da vulgaridade com que as transformações se apresentam atualmente é fruto de uma sociedade carente de idéias, mas, também, vítima de uma era que se encaminha para um destino incerto. Assim, o lugar comum passa a ser o belo, a beleza física supera a voz e o recurso tecnológico supera o talento. E as imagens e superproduções prosseguem embalando uma sociedade de consumo e, ao mesmo tempo, amordaçando a sua voz e sugando os seus últimos anéis.

Por fim, não convém resistir aos avanços tecnológicos, uma tendência que os próprios precursores já estariam a aderir. Contudo, nem por isso podemos aceitar que as nossas tradições sejam roubadas, permitindo que a vulgaridade suplante a arte e o improviso. De qualquer forma, assim como tentam destruir o mundo e ele continua a nos proporcionar coisas tão belas, o forró sobrevive, mesmo diante da ação dos seus predadores.

Evandro Matos – jornalista, editor deste Portal.

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