História

Lá pras bandas do sertão de Canudos…

Cabelos brancos e espalhados pelo vento que entrava pela porta de duas bandas, muito comum em casas do sertão nordestino. A voz pausada, mas com a firmeza de quem muito vivera, ele logo avisa aos que vão em busca de seus relatos: “minha prosa é positiva, eu não gosto de contar o que me contaram, eu gosto de falar do que eu vi e do que tenho certeza”. Foi assim que seu Zuca, ainda muito lúcido, aos noventa e nove anos, me recebeu em sua casa, lá pras bandas da cidade de Canudos.

Seu Zuca, figura tranqüila e quase secular da cidade, relata de maneira compassada algumas histórias de Canudos, parece uma fonte inesgotável, ou por certo minha sede de saber mais estava aliada à sua de relatar.

O sol ardente no centro do céu de Canudos concordava com os ponteiros do relógio de parede de seu Zuca, como um carrasco, já pontuavam quase meio dia, mas os seus relatos continuavam impressionando, e a sua paciência chega a incomodar os mais “atentos”, pois cheia de cuidados adentra a sala a sua genra alertando-lhe a hora do almoço. Sugeri então, que ele almoçasse e mais tarde continuássemos a prosa, mas ele disse não estar com fome e que preferia concluir.

E então prosseguimos, em busca dessa conclusão que parecia não querer acontecer, atentava-me às lembranças do ancião, pois esse impressiona mesmo quando contou um encontro que teve com o capitão Virgulino Ferreira, o destemido Lampião. Nessa viagem relatada, me aproximo dos fatos, sinto cheiro, sabor e lembranças do que não vivi. Segundo seu Zuca, e como era de se esperar, essa foi a maior aventura de toda a sua vida.

Percebendo o teor de importância daquele relato, como principiante, tomei coragem e pedi a seu Zuca que me deixasse gravar aquela nossa conversa, preciosa demais pra ficar apenas à mercê de minha memória, e então ele autorizou sem nenhum constrangimento, aguardando enquanto eu ligava o equipamento.

Autorizado, iniciou a nova história repetindo um gesto já bem próprio, levou as mãos à cabeça branca, e essa sem dúvida denuncia a experiência de quem esteve aos cuidados do capitão Virgulino: “Eu nunca gostei de bandido, sempre andei certo, mas um dia eu fui obrigado a estar com o bando de Lampião”, ressalva seu Zuca.

Contou que já se passava do ano de 1928, quando o cangaço, movimento surgido no início do século XX, a partir das péssimas condições sociais do sertão nordestino, na liderança de Lampião, passou pela comunidade de Canudos. Á época, o grupo acampou nas margens do Vaza Barris, rio que corta todo o sertão de canudense.

Procurado por Lampião, o irmão mais velho de seu Zuca foi ordenado para levar um bilhete até o seu amo, (patrão) que residia em sua outra fazenda na região do Cumbe (Euclides da Cunha) o bilhete rezava que o fazendeiro deveria enviar pelo portador a quantia de cem mil réis, porém, como esse seria ainda o resultado da venda de muitas cabeças de gado, o irmão de seu Zuca retornou com outro bilhete, esse pedia a Lampião que aguardasse uns três dias até que o fazendeiro recebesse o capital.

Assim, passado mais de três dias do retorno do bilhete, Lampião ordenou a um dos seus cabras, o Arvoredo, que fosse até à fazenda em busca da encomenda. Arvoredo foi recebido por seu Zuca que informou ao cangaceiro que o amo de seu irmão, ainda não se encontrava com a quantia em mãos.

Antes que seu Zuca concluísse o recado, a volante (polícia) cercou a fazenda, seu Zuca não tendo outra opção, pois seria acusado de coiteiro (pessoas que davam hospedagem a cangaceiros), escondeu o cangaceiro em um dos aposentos da casa. Dois soldados que vinham seguindo os rastros da cabroeira sertão adentro, entraram gritando que sentiam cheiro de cangaceiro por perto. Seu Zuca negou, reprovando depois a cunhada, que nervosa e bastante desapontada, ofereceu um cafezinho aos macacos, aumentando assim, o pavor de seu Zuca.

Nesse momento deu uma pequena pausa, e novamente levando as mãos à cabeça fez um comentário: “Nunca vi em toda a minha vida elemento tão frio como cangaceiro, eu passada aguniado as vistas pela greta do aposento, e tava ele lá rindo de arma em punho”, conta.

Temendo confronto com Lampião…

Continuando nossa conversa, seu Zuca diz que a volante se conformou e seguiu na busca sertão afora, perdendo assim o rastro, ora tão próximo, dos cangaceiros. O melhor de toda essa experiência de seu Zuca ainda estava por vir.

No dia em que o dinheiro foi liberado pelo fazendeiro, seu irmão, receoso de um confronto com Virgulino, pediu a seu Zuca que levasse o dinheiro a outro empregado, para que esse fosse ao encontro do bando na “baixada”, local de acampamento do grupo de Lampião, combinado por este como também o local da entrega de tal importância.

Chegando à fazenda ao receber a ordem do fazendeiro e do irmão de seu Zuca, o empregado mostrou-se obediente, mas segundo seu Zuca, ele o chamou até o interior da casa dizendo que precisava de sua ajuda para levantar uma “reis” que se encontrava caída. Desconfiado, seu Zuca o acompanhou, mas chegando lá, ele disse ter constatado que o tal rapaz estava era com medo: -“A feição dele tava sem sangue e já se borrava nas caça, então eu disse:- Cabra froxo! Tomei o dinheiro e fui ter com o bandido Lampião”, se orgulha ainda seu Zuca.

Chegando ao local combinado, Lampião recebe, conta o dinheiro, e dá-se por satisfeito, seu Zuca ainda nos relata o cenário construído pela cambada de Lampião:

“Era na beira do rio, no terreno da fazenda mermo do amo do meu irmão, o qui si via era muita panela de barro pero chão, mei mundo de tenda armada, o terrero alimpado cheio de pedra que servia de assento num é? Ou as veiz de trempe pra eles cunzinhar no meio das barraca, eles fazia a boca da noite um pagode, dançava xaxado e tirava verso,” rememora seu Zuca.

Nesse dia seu Zuca disse ter conquistado a afeição de Lampião, proseou com ele, demonstrando segurança nas respostas quando questionado, e entre um gole e outro de cachaça, servido pelo próprio Lampião e que seu Zuca, como um bom apreciador da especialidade, não se fazia de arrogado, disse ter até dançado xaxado com os cabras.

“E era home cum home, não tinha essa mardade das brincadeira de hoje, naquele tempo não tinha muler ainda no bando, só adespois quando Corisco arrumou Dádá, Lampião pegou a tale Maria Bonita, e mais muié foi chegando, isso adespois de passar por Canudos”, explica.

  

Observei que nessa fala de seu Zuca é conferido um certo cruzamento de informações, pois, segundo alguns autores, nesse período mesmo de 1928, Lampião apanha Maria Bonita, ali não tão longe de Canudos, em Santa Brígida, já na divisa com Paulo Afonso.

 Seu Zuca, ainda confirma o agrado de Lampião por ele, dizendo que esse o convidou para fazer parte do bando, e que dando a certeza do retorno ao mesmo, prosseguiu pra sua casa dizendo ir ter com os seus para avisá-los e pegar sua trouxa.

Nesse momento após uma boa “gaitada”, ele diz: “Nunca mais ele viu o fio do meu cabelo, adespois disso fui pro Sú, eu tinha era recei que ele me encontrasse e viesse me tirar arguma satisfa”, finaliza a história.

Por Laura Ferreira – Correspondente em Juazeiro e região

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